Uma pesquisa do Journal of Transport and Land Use (JTLU), publicada no começo de 2022, revelou que 37% dos proprietários de casas unifamiliares de Sacramento, na Califórnia (EUA), não guardavam os automóveis em suas garagens. Esses espaços acabaram virando depósitos ou grandes closets, como compara a pesquisadora Catie Gould em artigo do Instituto Sightline. Apesar de ser o retrato de uma cidade, os dados estão alinhados com informações obtidas em uma série de estudos mundiais que apontam a ociosidade dos estacionamentos nas residências. Em São Francisco, também na Califórnia, um levantamento verificou que 49% das 97 vagas de garagens analisadas no bairro Mission District não eram utilizadas para guardar veículos, exemplifica Catie.
Ela traz outros números que reforçam esse cenário: uma pesquisa com donos de imóveis com vaga para um carro em um subúrbio próximo a Reading, na Inglaterra, descobriu que 38% dos lugares destinados aos automóveis não eram usados para esse fim, já em Melbourne, na Austrália, estudo identificou que 18% dos habitantes de moradias unifamiliares davam outra função para esses ambientes.
Um dos mais completos levantamentos sobre esse tema, conforme a pesquisadora do Instituto Sightline, é o do Centro de Vida Cotidiana das Famílias da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Por quatro anos, 32 famílias de classe média com diferentes rendas e etnias de vários subúrbios de Los Angeles tiveram suas casas e objetos fotografados e avaliados pelos integrantes do estudo. Entre os pontos destacados pelo relatório estava o fato de que três em cada quatro famílias tinham coisas demais em suas vagas de garagem para colocar um veículo.
A explicação para que esse panorama se constitua está relacionada à combinação de duas políticas governamentais adotadas pela maioria das localidades norte-americanas e de outros países, inclusive pelo Brasil: a construção e distribuição de vagas gratuitas para carros em frente a grande parte das residências e comércios, e os requisitos mínimos de estacionamento fora da rua que cada novo empreendimento precisa atender. A facilidade de encontrar espaço junto às calçadas leva muitas pessoas a deixarem os seus automóveis por ali mesmo, observa Catie.
A pesquisadora salienta que as exigências de vagas para os veículos elevam os custos dos imóveis e impedem a edificação de mais habitações nos municípios. “Em meio a atual escassez de moradias, essa obrigatoriedade parece ser politicamente impopular”, afirma.
Segundo ela, os lugares nos meios-fios só deixarão de ser atrativos para os indivíduos quando forem cobrados de acordo com a demanda. A arquiteta Kaley Overstreet acrescenta, em artigo para o ArchDaily, que é preciso repensar o espaço voltado para os carros nas cidades e a oferta de estacionamentos nas vias e fora delas e que isso só será possível com a revisão das estratégias e códigos que fomentaram essa situação.
Esse quadro, argumenta Kaley, tem feito com que muita gente reconsidere a quantidade de terreno que é usada para armazenar os automóveis temporariamente. A arquiteta pontua que, somente nos Estados Unidos, há oito vagas para cada veículo, abrangendo mais de 5% de toda a área urbana do país, o que equivale a um território maior que os estados de Rhode Island e Delaware juntos. “Mesmo em Los Angeles, uma localidade que luta contra o déficit de residências, há mais estacionamentos que casas”, enfatiza.
Para reverter esse contexto, uma das soluções defendidas por ela é o redesenho dos requisitos de estacionamento em torno de condições mais orientadas para o mercado e o alinhamento do número de pontos para os carros com a necessidade real por eles.
“Quando priorizamos os automóveis, isso limita a região que podemos alocar para as habitações, empresas, serviços públicos e outras instalações. Também aumenta os custos de construção. Em Los Angeles, os empreendedores desembolsam, pelo menos, US$ 50 mil para fazer uma vaga para veículos”, detalha.
Cobrança adequada dos estacionamentos nas ruas é apenas uma das ações para retomar os municípios para as pessoas
O impacto dos carros nas cidades e na qualidade de vida dos indivíduos não é um tema novo, desde a década de 1970, o economista e especialista na área Donald Shoup investiga o assunto e bate na tecla da necessidade de rever a gratuidade das vagas para automóveis nas vias públicas e apoia o fim dos requisitos mínimos de estacionamento nas edificações, permitindo que o mercado determine a quantidade de lugares que cada projeto precisa.
Porém, essas questões vêm ganhando força nos debates sobre o futuro das localidades e são vistas como um dos caminhos para melhorar a mobilidade urbana, reduzindo os engarrafamentos e a emissão de gases de efeito estufa.
Outra medida ressaltada pela arquiteta Kaley Overstreet é alterar a forma como os usos do solo são planejados nos municípios. Conforme ela, separar moradia dos escritórios comerciais e de comodidades como parques, escolas, farmácias e supermercados faz com que mais pessoas usem seus veículos e cria a necessidade de se ter mais estacionamentos nessas diversas zonas.
A priorização dos carros no desenho das cidades deixa o deslocamento menos eficiente e promove a desigualdade ao dificultar que uma parcela da população tenha acesso a oportunidades de trabalho e de lazer, assinala artigo publicado na WRI Brasil.
Segundo os autores, Luis Antonio Lindau, Cristina Albuquerque, Guillermo Petzhold e Fernando Corrêa, utilizar os automóveis é uma escolha individual que traz muitos prejuízos coletivos. E, devido a isso, eles acreditam que cobrar pelos custos sociais dessa opção é uma maneira promissora para desestimular os cidadãos a dirigirem e, ao mesmo tempo, gerar recursos para aprimorar o transporte público e as estruturas para caminhar e pedalar.
Ainda de acordo com eles, apesar de mais da metade da população andar a pé, de ônibus ou metrô, os investimentos voltados para garantir a circulação de veículos e os incentivos para esse meio de locomoção são maiores.
Em São Paulo (SP), por exemplo, os carros ocupam 88% das vias e movimentam apenas 30% das pessoas. Dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) apontam que os automóveis e motos são responsáveis por 85% dos custos do transporte urbano para a sociedade, considerando nesse cálculo os gastos com infraestrutura e mortes e internações devido a acidentes e à poluição. O artigo frisa que, se os motoristas fossem taxados pelos reflexos negativos que conduzir veículos traz para todos, esse tipo de deslocamento ficaria menos atrativo.
Nesse sentido, os autores listam algumas experiências que têm resultados positivos em distintos lugares do mundo, como os estacionamentos inteligentes de São Francisco, na Califórnia, que são precificados conforme a demanda, e o “pedágio urbano” cobrado na região central de Londres.
O texto relata que a capital da Inglaterra arrecada mais de R$ 1 bilhão anualmente para o transporte coletivo ao tributar o acesso de carros, além de economizar com a diminuição dos acidentes de trânsito e das emissões de gases de efeito estufa. Outras localidades daquele país seguem essa política, assim como Singapura, Seul (Coreia do Sul), e da Noruega e Suécia.
Eles citam ainda a ação de Bogotá (Colômbia) que, para manter as tarifas de ônibus acessíveis e investir no transporte público, possui uma sobretaxa da gasolina, de 25%, que foi criada há mais e 30 anos e que possibilitou, entre outras medidas, a construção e manutenção da infraestrutura viária e de linhas de metrô e do BRT (Bus Rapid Transit, sistema rápido de ônibus) do município.
Dois exemplos brasileiros também são apresentados: o tributo cobrado de aplicativos de transportes em São Paulo, que em 2019 representou uma arrecadação de R$ 215 milhões para a capital paulista, e a taxa de mobilidade que Paranaguá (Paraná) tem para empresas e empregadores, em substituição ao vale-transporte.
Vagas ociosas podem ser transformadas em benefícios para os residentes
Além de repensar o espaço destinado para os estacionamentos nos novos empreendimentos e nas ruas, outras práticas estão sendo aplicadas para lidar com as garagens vazias em condomínios. Em São Paulo, alguns complexos habitacionais estão modificando essas áreas para oferecerem serviços para os seus usuários, como descreve reportagem do Jornal Nacional publicada no G1.Mercados, academias, salas de reunião e até lava-rápido podem ser encontrados nesses ambientes.
Com a pandemia de coronavírus, o número de pessoas que passou a fazer home office cresceu e muita gente percebeu que o automóvel não era tão essencial em suas rotinas. Essa mudança fez com que a quantidade de veículos diminuísse nos condomínios.
Em um dos prédios pesquisados pela matéria, a queda foi de 30% em dois anos. Segundo um levantamento sobre o mercado de trabalho no Brasil, 56% dos profissionais seguem em uma jornada híbrida, parte em casa e parte em seus empregos.
Para o arquiteto, urbanista e professor da Universidade Federal de São Paulo, Kazuo Nakano, a ideia de levar comércio e serviços para dentro dos empreendimentos é uma tendência antiga. A prática era comum até a década de 1970, quando a edificação de prédios mistos era estimulada na capital paulista.
“Eles (os moradores) podem alugar (os lugares ociosos) e isso pode ajudar a reduzir a taxa condominial, assim como promover essa reorganização comunitária, essa aproximação de comércio e serviço com a residência, a geração de emprego, ativação de uma microeconomia do bairro e, no meio disso tudo, uma vitalidade da vida urbana”, analisa Nakano.
Via Caos Planejado.